quarta-feira, agosto 09, 2006

Baby

Sou atirado pelo fio que viaja ao contrário à velocidade do pensamento, e chego em meio ápice à primeira vida. Ao secar as mãos na toalha turca, muito felpuda porque ainda é nova, e por isso pouco absorvente, o que me demora o gesto e irrita, vi-me uns bons três palmos mais baixo, quando ainda não me curvava para ficar à altura do toalheiro.
Fiquei prostrado, as pupilas dilatando-se, de um olhar fixo no nada, enquanto a íris do espírito me alimenta sucessões de imagens, velozes demais para que as possa registar, tipo one-time offer ou filme que já há muito saiu da tela, não voltou à emissão e nos esquecemos de gravar.
Banho-me de ingenuidade em puro deleite com água tépida. Os gestos demorados fazem-na deslizar devagar pela linha da nuca, baixando do pescoço pelo peito e do outro lado pelos ombros e pelas omoplatas.
Deixo-me caprichosamente tomar por um amargo de boca, um rancor, e nado de volta ao líquido amniótico, não o uterino, mas um outro igualmente estanque, contido pelos espaços primeiros, e a que primeiro chamei meus, mesmo antes das palavras. Contemplo o lado de fora, sabendo-me protegido cá dentro. (A película que me separa do exterior, que me ampara, protege e resguarda não é transparente, mas deixa passar vultos, cores, sons, e em dias bons até mesmo alguns cheiros. Adivinhava que o lado despressurizado me esperava, para quando não se sabia então ainda. Por ora, resta emanar um ar de quem ainda não deu por nada, protelando o inevitável. Entretenho-me fitando os dedos das mãos.) Porém, também este lago esférico irá perder as suas margens, derramar-se numa poça inútil e pequena, suja, que convém limpar até que dela nada reste.
Mas hoje vou deixar-me ficar no lago. Vou deixar-me afogar pelas águas do lago, e respirar com verdadeira liberdade, num mundo a que não pertencem as coisas de fora.
Martinho

1 Comments:

Blogger Andreia Arenga said...

Bem...estou sem palavras.Isto é mesmo muito bom!É só o que posso dizer.

12:43 da manhã WEST  

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