sábado, junho 29, 2013

Ellie

E eis senão quando a total ou quase total arbitrariedade que manda em tudo me dá um presente preciosíssimo.
Estou no carro e ao telefone, a combinar petiscos e amigos e depois de ziguezaguear pelas ruas de Lx, tomo um atalho para ir buscar alguém à porta de casa. O atalho foi cortado, eu não sabia, tive que dar meia-volta. Quando paro para manobrar dou de caras com uma senhora na casa dos cinquenta, que ao fim de um segundo reconheci. Tinha sido, há muitos anos, por um breve período de tempo, minha supervisora, nos tempos em que ainda era mesmo bom trabalhar no 118 (Portugal Telecom). Nunca fomos sequer próximos, mas, de algumas pessoas, sabemos muito a partir de muito pouco. Ou que não seja muito, mas sabemos o fundamental. Só com muita dificuldade teria sido capaz de me lembrar do seu nome. Fiquei especado, olhares cruzados, disse-lhe Olá com um sorriso na voz, respondeu-me sem me ter reconhecido. Saí do carro, disse-lhe Trabalhei consigo. Reconheceu-me então. Trocámos umas quantas palavras, recordámos outros tantos nomes, ficou a promessa de um café para breve. Não sei que vai acontecer, nem isso me importa neste instante. Estou fora de mim de contente.

terça-feira, abril 09, 2013

Instante

Às vezes, a estas horas, imagino a Terra parada, por uns minutos, para que eu pudesse ir ver pelas janelas dos que amo como, longe, partilham eles um mesmo instante.

Martinho

terça-feira, janeiro 10, 2012

Por aí

"Por aí. Tenho andado por aí." Será a resposta, se me perguntares o que tenho feito, por onde tenho andado. Distraído. Desencontrado de mim, porque quando aqui escrevo é mesmo quando me confronto. Logo, se não escrevo, deve ser porque ando a evitar-me. A maior parte do tempo ou consigo mesmo evitar-me ou nem sequer preciso de me sentar comigo e conversar. Pode ser-se feliz com alguém e por alguém mesmo se não estando sempre colado ao outrem. Mas há ocasiões em que, por mais que se fuja, a minha imagem reflectida em todas as superfícies, e no escuro dos olhos fechados bloqueia-me, obriga-me a sentar-me à mesa, como um pai a um puto que não quer comer a sopa. Com licença, vou enfrentar as colheradas. Prefiro que ninguém assista.

Martinho

quarta-feira, janeiro 26, 2011

Starmaker

... "it's the only life I know
and I can't even call it my own"
Starmaker, FAME

Ao iniciar este texto não sei nada, mesmo nada do que quero dizer. Sei que há momentos que, tanto quanto possa, não posso deixar cair no esquecimento, e o blogue (estou em casa) é o que mais se assemelha a um perpetuário* (esta palavra não existe, mas exprime o que quero dizer).

(Aqui há tempos, e talvez como desculpa que arranjei para lidar com a frustração de não escrever nada há muitíssimo tempo, conjecturei que, por mais que tente, o motivo último da minha escrita transcende-a e é muito maior que palavras frases e textos. Por tal as palavras, as frases, os textos ficariam (ficam) sempre muito aquém do que cá vai dentro.)

Depois, do nada, vem aquele instante que funde o bom e o mau, que suspende durante um bom pedaço tudo o que costuma ocupar-me, que me leva ao limiar de mim. Sei que provavelmente não vem a haver nada de mais intenso.

É verdade, é impossível explicar.


Martinho

quarta-feira, outubro 28, 2009

Nota solta de um cobarde

Sobe o fumo, sobe o tom,
adensa-se o ar, agora mais húmido.

Estou a ficar sem argumentos para me desculpar de não viver, persistindo na nota "dó" e limitando-me apenas a existir.


Martinho

terça-feira, maio 19, 2009

Ali à frente

"and she shows you where to look, among the garbage and the flowers"
Suzanne, LEONARD COHEN

Exasperei, e sentei-me à beira da estrada, o choro como se esgotada a paz.
Tocaste-me no ombro, mão firme e terna, e disseste-me "olha, olha,

Ali à frente."

Talvez não saibas, mas salvaste-me a vida.

Martinho

domingo, maio 10, 2009

Pulsar

A urgência inquieta-me ao pulsar de cada batida do coração.

De cada segundo.

A cada cadência.

As forças esmagam-se como uma locomotiva que avança a todo o vapor contra uma montanha. Não se anulam, mas destroem-se.

A energia, que não se perde, mas de que a montanha não permite se faça movimento, esvai-se no grito agudo das rodas que derrapam nos carris, como se uma dor imensa.

A cada momento.

Em cada um dos momentos em que me quero libertar. Em cada um dos momentos em que quero respirar.

Não consigo explodir, mas a energia não pode ser contida. (Será que impludo?) Tenho que resolver, ou o mundo pararia.

Escrevo.

Não sei para onde foi tudo, mas sinto ainda o pulsar do coração, do segundo, da cadência.

Acabo prostrado, exangue. Quando rendo mais uma lasca de vida vejo Ofélia dissimulada na multidão.


Martinho

terça-feira, março 03, 2009

Ela

Ela diz

"here I am
this is me
I am yours and everything about me,
everything you see
if only you look hard enough"
My sister, THE TINDERSTICKS

Cada vez mais está mais escuro, por isso cada vez mais os pequenos brilhos, como num céu de Lua nova estrelado mais quando nos afastamos da orla urbana, se deixam ver, ao semicerrarmos os olhos, por entre choro e soluços.

Parte veloz.

O grito está preso na garganta e não sai.

Está aqui, tanto brilho. Sacuda-se o pó.

Resistamos.


Martinho

quinta-feira, outubro 16, 2008

uns afinais

Voltadas páginas, encerrados anuários, eis que reparo que se cumpriram umas quantas profecias.
Calhou vir hoje até aqui, ao lado de fora do cotão, reler-me.
Não pode deixar de ser com nostalgia que constato que continua a passar o tempo; que diante de nada se detém. Fui relendo e recordando, nuns momentos só assim, noutros com mais comoção, até que vi que foi há exactamente dois anos que morreu o Lucky. Foi por isso que me resolvi a passar ao lado de dentro do cotão.
Agora, tecer considerações sobre as implicações da morte do meu gato nos dois anos que se lhe seguiram é válido, e, ademais, tentador. Permitir-me-ia deixar um registo feito, picar o ponto, escapando-me ao fundamental. Mas não estou para aí virado. Pico o ponto, sim, mas só para dizer que o tempo continua a passar, e que eu há muito continuo a fugir do fundamental. É mais cómodo assim. Só não me vou atirar areia para os olhos e fingir que me ocupei assim tanto do luto. Não sei do que é que me ocupei. Sei que fiz mais do mesmo.
Sei que continuei a deambular por aí, pelas ruas de Lisboa, à espera de algum dia tropeçar numa pedra da calçada.
Sei que continuei os meus outros lutos, e que acatei por fim com paz a viuvez minha, dos meus outros lutos. Sei que ainda sou viúvo.
Sei que continua à chuva e em silêncio e em resignação a minha pedra da calçada.
Estarei sempre à tua espera. Quando quiseres, vem.
Podes partir os vidros.

Martinho

quinta-feira, novembro 29, 2007

Alentejo

O peso morno do planalto muito seco depois da primeira tarde de calor a sério deste ano trouxe um cheiro a podridão. Perguntaste-me se sentia o cheiro, enquanto a pele do teu rosto se retorcia com repugnância. Dei a resposta que decorei há muito - Tenho pouco olfacto; é das alergias! - para me esquivar sempre a comentar odores, que, salvo ditosas excepções, me metem todos nojo. Seja de hálitos, perfumes ora demasiado olorosos, ora frugais em defeito, livros velhos ou novos, restaurantes e fumos, transpirações ou desodorizantes, raro é o que me convida a encher o peito de ar, por força de desejar intensificar a passagem das nanocoisinhas pelas ventas.

Senti, mais cedo que tu até, o cheiro a cadáveres de cães (só não quis falar sobre isso). Não posso pensá-lo no singular, o cheiro era tão intenso, ademais adensando-se, que era impossível não imaginar uma matilha inteira atropleada por carros, mas um de cada vez, cosendo a carne lentamente entre pneumáticos, asfalto e o sol inteiro, há alguns dias.

Só que não eram cães, nem vinha da estrada.


Martinho

terça-feira, setembro 11, 2007

"Der Tod des Kinds"

caída a um canto, pernas atiradas, vestido torcido deixando-lhe nú um ombro, osso e pele, quase não mais, cabeça suspensa só pelas peles do pescoço, senão tombar-lha-ia costas abaixo, olhos de vidro líquido, lábios abertos o espaço de um suspiro de ave canora, indecisa se há-de exalar mais um grito, está a Mãe. baba-se do choro há muito, e há quase tanto que deixou de se importar com isso.
o Pai, esse, desde logo se calou, sente a cabeça atravessada de orelha a orelha por um espeto que, alfinete, faria dele mosquito. ensurdeceu, emudeceu também claro, vê ainda, contudo, mas só vultos. o sabor do que come é igual a soro que se lhe injectasse por intravenosa, igual a água quente. este amontoado de carne só sai deste estado de pré-putrefacção por acção dos medicamentos, para dormir, sedado. e não apodrece de uma vez, por última vontade própria, porque outros o vão impedindo, e ao próprio ainda não lho ocorreu.

a vida fora diferente, alegre, difusa, anónima e alegre. com cinzentos, com pastéis e garridos, por vezes, também. agora resta a dor infinita. o grito numa nota perpétua. o grito numa nota ininterrupta, dilacerante, capaz de tornar sandeu o último dos sãos.

tudo isso, é só o que se imagina, vendo de longe a areia de uma praia com sotaque, e nela um lençol a esboçar um vulto. tudo isto é, suponho (porque, sabê-lo, não sei, nem quero), infinitesimalmente menor e menos negro do que o foi, e será ainda para o Pai e para a Mãe.

que a terra nos poupe, por mais umas horas.

quanto a mim, penso neles. às vezes choro.


Martinho

quarta-feira, maio 23, 2007

Aconteceu a um amigo meu (a pedra)

A ausência instala-se como se fosse uma novidade. Conquista território, não se expande para além das partes do corpo que normalmente acolhem emoções, principalmente o peito e a alma, mas toma inexoravelmente conta de mim. Exerce um peso, na nuca, em particular. Se tivesse uma banda sonora, seria um zunido. Despoleta um sentido de fraqueza, mas a última coisa que me ocorre é comer. Ligado à máquina, desenharia uma linha contínua, com raras oscilações, que mais não seriam que suspiros.
Os olhos ficam secos de pouco pestanejarem, fixados num ponto sem culpa, e um abraço teu era tudo o que eu queria.

Martinho

terça-feira, maio 22, 2007

Até breve, muito breve

(this one goes out to the one[s] I love)

Porque passamos tanto tempo juntos.

Porque nos entregamos, confiamos à palma das mãos uns dos outros as relíquias que os avós nos legaram.

Porque temos ombros feitos paciência, feitos almofadas, em horas desfiadas, depois de tudo dito, depois de nada mais a dizer, mas ainda muito antes de estar acalentada a alma, a torturada alma.

Porque depois da dor, depois de dilacerados pela locomotiva em movimento, cada vez mais veloz, estão os enfermeiros sem bata, de sorriso calmo e muito terno, voz morna, toque doce macio, e um dedo que nos aponta para amanhã.

Porque... enfim, porque na amizade que nos une, os laços que construímos são porosos, e deixam passar o ar que se respira.

Mas porque um dia se parte, por uma escassa hora ou de vez, porque um dia se parte, saibam-me aqui, humilde, nú, a dizer-vos que vos amo.


Martinho

segunda-feira, novembro 06, 2006

Também eu

So am I

A fotografia vazia fria, que tirei uma vez no teu quarto, tu nela, sentada, serena, em contemplação de mim, a eternidade por detrás das tuas costas, e a luz cambiante também. Tu sorris; pouco, mas sorris, e olhas de lado. Parece que nem respiras.

So am I

Hordas de gerações, vão passando por aqui, indiferentes.

So am I

Pensar que não sou mais perene que uma nódoa, ou um fio puxado numa camisola.

So am I

Ver a chuva, impassível, borrifando-se no que molha.

So am I

Por caridade. Por mais nada, podíamos ter sido poupados à verdade das despedidas finais.

Assim és tu, também.


Martinho

domingo, outubro 15, 2006

O vazio paralelo





Ao Lucky, que morreu esta manhã.

(1991-2006)
A luz mudou.

Estou a andar dentro de casa, detenho-me por dois segundos. Percorre-me a ideia de que algo está fora do sítio e que me levantei não sei já porquê. Não estou com sede. A cama está por fazer e espera que eu a faça, ou que nela me deite mais logo, decido eu.

Ao cair do terceiro segundo, lembro-me que não estás aqui. Que não vais voltar. Andei umas horas a cozinhar com temperos de engodo as emoções, como se pudesse disfarçar o sabor de uma carne que não gosto.

A luz mudou. Há uma fístula aqui em casa, que conduz a um vazio paralelo, indistinta a quem aqui não mora.

As minhas comoções ainda lá não chegaram, mas sei que não há-de tardar a tomada de culpa por não ter passado as tuas últimas horas contigo ao colo. Ontem, sabes, quando me fui deitar, olhei-te pela última vez, com uma mão bem firme a vedar a tampa da caixa onde trago os sentimentos, para não sofrer. Não sei como foi para ti, se terias preferido que eu o fizesse. Não sei se te teria acalentado, se te teria confortado. Se tivesse a certeza, teria abdicado do meu conforto egoísta. Tudo me levou a crer que preferias estar quieto, no teu canto. Assim me despedi de ti.

Hoje quando acordei, já não eras.

Sinto já a tua falta.

Deixaste um vazio muito maior que tu eras.

Fico agora aqui, desolado, como uma bola de ténis jogada entre a coragem e a cobardia, não sabendo qual delas representa o erro ou a tal culpa. Não sei se salvaguardar-me a alguma dor é cobardia ou se émesmo assim. Não deixo de pensar que me ensinaste uma lição, quando pioravas e te punhas espartana e estoicamente à porta de casa, a dormir no chão frio; encostado à saída.

Passámos quinze anos juntos. Contigo aqui em casa me fiz adulto, entrei e saí vezes sem conta, por uns minutos ou por mais de um ano… Poderia continuar horas a fio por este caminho, mas

Também este lamento tem que ter um ponto final. Como despedida, sabe, no Céu dos gatos onde estarás a chegar para viveres eternamente com whiskas, muitas gatas e uma lareira diante da qual vais dormir enroscado, sabe que te amei, como um humano pode amar um gato. E, mais do que o saberes agora, espero que o tenhas sentido enquanto aqui estiveste.

Uma festinha na tua nuca,
Martinho

quarta-feira, outubro 11, 2006

Jarro

sem flores,
estou atirado para cima de um móvel poeirento,

vazio,
menos a marca calcária que se vê de fora

de onde vem?, porque está lá?

de uma interrupção,
do inacabado.

da cruelmente veloz efemeridade do precioso.


Rui Aseglo

quinta-feira, setembro 28, 2006

"gralha"

Lê-se na visão 7 de hoje:
"Há meia-noite, as ruas do Cais do Sodré mantêm-se calmas."
Vamos acreditar que foi uma gralha, que alguém que publica nunca escreveria assim...

segunda-feira, setembro 25, 2006

Lx - Moscovo

À vossa direita encontram um novo link, Lx-Moscovo. Sigam-no!
É a aventura que muitos - e eu, muito! - gostariam de viver.

Obrigado,

Martinho

quinta-feira, agosto 17, 2006

(esboço)

encontrei-a num dos dias da caminhada. ainda não tinha dado por ela no grupo, mas a novidade não alvitra surpresa, é coisa comum não vermos muitas vezes o que está à vista. trocámos as palavras que as circunstâncias sugeriram, mas apenas a encobrir o diálogo averbal que se gerou. soube bem, ter novamente no grupo um elemento que espera por mim na retoma da marcha, que procura uma sombra onde caibam dois, a cada nova paragem. que me interpela para me perguntar qual é o meu aroma predilecto, naquele justo instante em que a fadiga e o aborrecimento me iam já tomando de vencida, obrigando-me a acumular maresia nos cantos dos olhos. nunca quero chorar durante a marcha, e isto por muitas razões. porque o frio convida a manter as mãos dentro das luvas dentro dos bolsos, e é incómodo estar a despir as mãos. porque quebra o ritmo e entorpece as pernas. porque o revestimento do sobretudo não enxuga as lágrimas, se a preguiça me impusesse que apenas esfregasse o braço pela cara. porque o grupo é quieto, e, às claras, pouco dado a comoções. pelo constrangimento, meu e dos outros. porque assim me escuso a responder a perguntas. na décima noite o líder fartou-se. sem uma palavra, largou as cartas e o equipamento demonstrativamente na ágora do local da pernoita. quem quisesse que os tomasse. não passou meia hora até às primeiras altercações. «o que ia ser de nós, deixa estar que eu faço, tu, alguma vez, eu, sim, claro que sim». mantive o silêncio, atento à discussão. ela juntou-se-me e sondou a minha opinião. perguntei-lhe ao invés qual era o aroma predilecto dela.

Martinho

A janela despida

A janela de estrutura de madeira simples, velha, de vidros frágeis, sem cortinas e numa parede que mais lembra papel, deixa ver para fora o fim do vale de Alcântara. Adivinha-se à frente a linha do comboio quando passa um, vê-se a avenida de Ceuta com carros que devolvem o sol nascente a esta colina voltada a ocidente, quase cegando, e que, a esta distância, se assemelham a brinquedinhos. Um espelho pendurado ao lado da janela devolver-me-ia o cabelo despenteado por cima de um rosto ensonado, o tronco despido, pele arrepiada do frio, o olhar fixo, perdido na janela e os lábios tacteando uma caneca de café com leite que acabei de preparar.
Tento iludir a passagem do tempo buscando pensar em coisa nenhuma, buscando esvaziar a mente, ou dando importância aos ruídos da cidade que me chegam a espaços largos, uma ou outra voz estridente das mães que a esta hora de sábado arrastam o puto para fora de casa para irem com elas à praça. A mera sugestão de um cenário convida-me a um passeio pela memória.

Nasci em Lisboa, no fim da época em que ainda se ouviam pelas vidraças pregões e, menos frequentemente, o som inconfundível da gaita do amolador. Lembro ao acaso e com melancolia o meu primeiro chapéu-de-chuva, comprado de ajuste ao meu tamanho, de cabo de plástico com relevos a imitar pregas no couro. No segundo ou terceiro Inverno houve que recorrer aos serviços do senhor que vinha pedalando rua abaixo, e depois num lapso de tempo transformava a bicicleta em bancada e pedra de amolar. Levou-me a minha avó pela mão ao assobio lento e depois rápido da gaita, o chapéu na minha outra, à esquina da rua, para que se reparasse a vareta solta. Aos primeiros assobios mal coados por uma janela como aquela que tenho diante de mim, confirmou que o lume do fogão podia mesmo dispensar os seus cuidados por um quarto de hora, desatou o avental e largou-o sobre o banco de tampo vermelho num só gesto, chave e porta-moedas sempre prontos a serem fisgados de saída, eu na outra dela, com o recado pega no chapéu, vamos arranjá-lo, e eis-me na rua, banhado por um sol de Páscoa, redentor, secando as chuvas com que o Inverno se despediu até Dezembro, fazendo num estalar de dedos uma qualquer rua ficar eternizada na memória de um miúdo.

Há-de vir, um tempo em que eu já não pense assim, nas memórias, como se só nelas houvesse vida e sensações com cores garridas e odores sumptuosos, há-de vir esse tempo feito só de presentes, em que os passados são como o sal que salpico com prudência sobre o jantar, prevenido que estou contra a comida sem tempero, mas também contra os males dos exageros, sal que serão passados que servem o presente. Volta-me o espírito à sala. Lembro-me um morto-vivo. Daqui a nada as horas vão exigir de mim que cozinhe e que me nutra, que arrume, que me arrume. Salva-me de qualquer maneira a noite, em que debaterei factos diversos - de pouco ou nenhum interesse para a ferida que não sara - com outros frequentadores do mesmo bar onde o álcool afoga as mágoas, ou as queima, adiando para a aurora que se segue um novo passeio às vistas desprovidas de cor e magia como a da minha janela, nesta manhã, e do meu tronco despido e só.
Martinho

quarta-feira, agosto 09, 2006

Baby

Sou atirado pelo fio que viaja ao contrário à velocidade do pensamento, e chego em meio ápice à primeira vida. Ao secar as mãos na toalha turca, muito felpuda porque ainda é nova, e por isso pouco absorvente, o que me demora o gesto e irrita, vi-me uns bons três palmos mais baixo, quando ainda não me curvava para ficar à altura do toalheiro.
Fiquei prostrado, as pupilas dilatando-se, de um olhar fixo no nada, enquanto a íris do espírito me alimenta sucessões de imagens, velozes demais para que as possa registar, tipo one-time offer ou filme que já há muito saiu da tela, não voltou à emissão e nos esquecemos de gravar.
Banho-me de ingenuidade em puro deleite com água tépida. Os gestos demorados fazem-na deslizar devagar pela linha da nuca, baixando do pescoço pelo peito e do outro lado pelos ombros e pelas omoplatas.
Deixo-me caprichosamente tomar por um amargo de boca, um rancor, e nado de volta ao líquido amniótico, não o uterino, mas um outro igualmente estanque, contido pelos espaços primeiros, e a que primeiro chamei meus, mesmo antes das palavras. Contemplo o lado de fora, sabendo-me protegido cá dentro. (A película que me separa do exterior, que me ampara, protege e resguarda não é transparente, mas deixa passar vultos, cores, sons, e em dias bons até mesmo alguns cheiros. Adivinhava que o lado despressurizado me esperava, para quando não se sabia então ainda. Por ora, resta emanar um ar de quem ainda não deu por nada, protelando o inevitável. Entretenho-me fitando os dedos das mãos.) Porém, também este lago esférico irá perder as suas margens, derramar-se numa poça inútil e pequena, suja, que convém limpar até que dela nada reste.
Mas hoje vou deixar-me ficar no lago. Vou deixar-me afogar pelas águas do lago, e respirar com verdadeira liberdade, num mundo a que não pertencem as coisas de fora.
Martinho

segunda-feira, julho 03, 2006

Uma das caves da alma

Um cigarro solitário, só solitário porque não tem companhia, não porque seja o único que fumo de uma assentada, deu-me a ilusão que procurava, a de que me conseguia sossegar. Enliado o fumo de um cigarro noutro, deixo contudo descer-me aos olhos a pergunta "Para quando?"

Soprando o fumo mono, monocromático, monótono, sei secretamente que tenho a resposta numa das caves da alma. Preferia não o revelar a ninguém, mas não nos percamos por aí. O último dos sentidos dos segredos é virem a ser revelados. Para nunca, é a resposta. Ou só para alguns, o segredo.
Desci já muitas espirais, das de desespero, brancas, lisas, sem corrimãos ou bordas a que me possa segurar. Da queda no fundo fica o torpor, o indispensável repouso que se lhe segue, e o despertar trôpego do dia seguinte, essa manhã sem hora para o ser, é quando calha, até de noite. Fica a garganta seca, meia dorida, e a descoberta por entre olhos ainda que fechados de remelas presas nas pestanas, de um novo jardim, feio, meio abandonado, cagado pelos cães, tão diferente do das primeiras primaveras. De espantar que por cá ande tanta gente...

Apetece perguntar "O que fazem por aqui?", mas o pudor do ignorante que de si sabe, ao menos, isso, cala a curiosidade. Também, serve de remédio saber que cedo se descobrirá, basta aguardar e observar um pouco.

Não há escadas de saída, muito menos elevadores panorâmicos, com música ambiente e um ascensorista idoso e cordial a perguntar se seguimos directamente para o êxtase, ou se nos ficamos por um qualquer entremeio. Há quedas, mais quedas e fundos sem saídas a não ser outras quedas. A gravidade não perdoa, e à alma, ainda lhe falta muita engenharia.

Sento-me desistente a um canto, prestes a sacar de tabaco e de lume, contente por poder fumar, e por ter descoberto um recanto afinal tão agradável. É só quando acabo de desviar o olhar da ponta do cigarro casada com a chama do isqueiro que ouço alguém sorrir...

Martinho