quinta-feira, agosto 17, 2006

A janela despida

A janela de estrutura de madeira simples, velha, de vidros frágeis, sem cortinas e numa parede que mais lembra papel, deixa ver para fora o fim do vale de Alcântara. Adivinha-se à frente a linha do comboio quando passa um, vê-se a avenida de Ceuta com carros que devolvem o sol nascente a esta colina voltada a ocidente, quase cegando, e que, a esta distância, se assemelham a brinquedinhos. Um espelho pendurado ao lado da janela devolver-me-ia o cabelo despenteado por cima de um rosto ensonado, o tronco despido, pele arrepiada do frio, o olhar fixo, perdido na janela e os lábios tacteando uma caneca de café com leite que acabei de preparar.
Tento iludir a passagem do tempo buscando pensar em coisa nenhuma, buscando esvaziar a mente, ou dando importância aos ruídos da cidade que me chegam a espaços largos, uma ou outra voz estridente das mães que a esta hora de sábado arrastam o puto para fora de casa para irem com elas à praça. A mera sugestão de um cenário convida-me a um passeio pela memória.

Nasci em Lisboa, no fim da época em que ainda se ouviam pelas vidraças pregões e, menos frequentemente, o som inconfundível da gaita do amolador. Lembro ao acaso e com melancolia o meu primeiro chapéu-de-chuva, comprado de ajuste ao meu tamanho, de cabo de plástico com relevos a imitar pregas no couro. No segundo ou terceiro Inverno houve que recorrer aos serviços do senhor que vinha pedalando rua abaixo, e depois num lapso de tempo transformava a bicicleta em bancada e pedra de amolar. Levou-me a minha avó pela mão ao assobio lento e depois rápido da gaita, o chapéu na minha outra, à esquina da rua, para que se reparasse a vareta solta. Aos primeiros assobios mal coados por uma janela como aquela que tenho diante de mim, confirmou que o lume do fogão podia mesmo dispensar os seus cuidados por um quarto de hora, desatou o avental e largou-o sobre o banco de tampo vermelho num só gesto, chave e porta-moedas sempre prontos a serem fisgados de saída, eu na outra dela, com o recado pega no chapéu, vamos arranjá-lo, e eis-me na rua, banhado por um sol de Páscoa, redentor, secando as chuvas com que o Inverno se despediu até Dezembro, fazendo num estalar de dedos uma qualquer rua ficar eternizada na memória de um miúdo.

Há-de vir, um tempo em que eu já não pense assim, nas memórias, como se só nelas houvesse vida e sensações com cores garridas e odores sumptuosos, há-de vir esse tempo feito só de presentes, em que os passados são como o sal que salpico com prudência sobre o jantar, prevenido que estou contra a comida sem tempero, mas também contra os males dos exageros, sal que serão passados que servem o presente. Volta-me o espírito à sala. Lembro-me um morto-vivo. Daqui a nada as horas vão exigir de mim que cozinhe e que me nutra, que arrume, que me arrume. Salva-me de qualquer maneira a noite, em que debaterei factos diversos - de pouco ou nenhum interesse para a ferida que não sara - com outros frequentadores do mesmo bar onde o álcool afoga as mágoas, ou as queima, adiando para a aurora que se segue um novo passeio às vistas desprovidas de cor e magia como a da minha janela, nesta manhã, e do meu tronco despido e só.
Martinho