quarta-feira, maio 03, 2006

Queima

"Os olhos pregados na savana queimada,
o frio do lado escuro, nas costas dos braços,
a prostração diante do que não tem remédio,
a impaciência de quem espera chegarem os teus passos."
Rui Aseglo

Estou desolado. Vejo a terra ardida, de um fogo nunca antes visto. E é diferente de facto; este arde devagar, muito devagar, leva anos a consumir, mas não pode ser extinto. Há bombeiros a toda a volta, que de nada podem valer à savana. Não há água, nem pós ou outras manhas que consigam extinguir esta combustão. É a nossa terra. Como esta não há outra, nem tem nenhuma outra igual valor. Quando o grande incêndio terminar, pouco ou nada restará. Vamos ser só nós, um podengo vadio quase adoptado por ti, quem não nos larga nem por nada, mais ninguém lhe deu de comer.
Martinho

segunda-feira, maio 01, 2006

Ladaínha a um santo esquecido

Precisava de pedir à minha bisavó que me ensinasse outra vez aquela ladaínha, que tantas vezes lhe ouvi, mas que nunca cheguei a aprender. Não me lembro já qual era o santo em causa; sei que nos meios das tardes em que a minha avó não nos vinha interromper a tempo, a velha insistente até me ía convencendo a decorar o rosário aquele. Lembro-me porém que muitas das palavras que ali estava a repetir, enquanto contraía os músculos para segurar uma convicção de fé que não tinha já à partida, eram ainda como o sinal sonoro que se sobrepõe aos palavrões nos canais de televisão menos progressistas. Não tinham significado. Às vezes ficava depois entre livrinhos de banda desenhada editada no Brasil, quieto, a tentar adivinhar o que poderia representar aquela palavra, ou aqueloutra, baralhado, por não as poder apor a alguma coisa que eu tivesse já circundado.
A minha bisavó já morreu há muitos anos, e agora vejo que se perdeu a ladaínha, a que hoje me fazia tanta falta. Foi-se, com o último dos antigos, sem ter ficado escrita em parte nenhuma, foi pó que tinha sido areia, levado pela aragem, e de se ter espalhado por todas as partes, não ficou em lado nenhum.
Queria, reconhecido que está o erro, não nele reincidir. Estava agora para aqui estendido na cama, a pensar em quem não devo, e em como poderia eu perpetuar o pó que já foi areia, que ainda tenho nas mãos, dessa areia que já fora pedra, real, aguçada numa das extremidades, cortante, do outro lado lisa, serena, morna do sol onde tinha sido vislubrada pela primeira vez, a deleitar-se.
O corpo em que fiz incarnar o meu capricho, pedra ou outra metáfora qualquer, feito sólido para que eu o pudesse agarrar, esconder ou mostrar, e, ao fim do dia, amar, feneceu. Estamos aqui, velantes, tu e eu, a olhá-lo, a vê-lo decompor-se, sem saber que homenagem queria que lhe prestássemos. Cutuco-te amiúde, encolhes-me os ombros. Não sabemos o que havemos de fazer, eu ainda pareço preocupado com isso, tu, nada. Eu, pelo menos, não sei. Será que sabes e não mo dizes? Já to perguntei, não me respondeste a direito. Finalmente desisto, baralhas-me por demais.
No fundo estou só deitado em cima da cama, a pensar como seria possível enternizar as centelhas mágicas com que um dia iluminaste o meu céu, e depois derramaste por mim abaixo.
Martinho