quinta-feira, agosto 17, 2006

(esboço)

encontrei-a num dos dias da caminhada. ainda não tinha dado por ela no grupo, mas a novidade não alvitra surpresa, é coisa comum não vermos muitas vezes o que está à vista. trocámos as palavras que as circunstâncias sugeriram, mas apenas a encobrir o diálogo averbal que se gerou. soube bem, ter novamente no grupo um elemento que espera por mim na retoma da marcha, que procura uma sombra onde caibam dois, a cada nova paragem. que me interpela para me perguntar qual é o meu aroma predilecto, naquele justo instante em que a fadiga e o aborrecimento me iam já tomando de vencida, obrigando-me a acumular maresia nos cantos dos olhos. nunca quero chorar durante a marcha, e isto por muitas razões. porque o frio convida a manter as mãos dentro das luvas dentro dos bolsos, e é incómodo estar a despir as mãos. porque quebra o ritmo e entorpece as pernas. porque o revestimento do sobretudo não enxuga as lágrimas, se a preguiça me impusesse que apenas esfregasse o braço pela cara. porque o grupo é quieto, e, às claras, pouco dado a comoções. pelo constrangimento, meu e dos outros. porque assim me escuso a responder a perguntas. na décima noite o líder fartou-se. sem uma palavra, largou as cartas e o equipamento demonstrativamente na ágora do local da pernoita. quem quisesse que os tomasse. não passou meia hora até às primeiras altercações. «o que ia ser de nós, deixa estar que eu faço, tu, alguma vez, eu, sim, claro que sim». mantive o silêncio, atento à discussão. ela juntou-se-me e sondou a minha opinião. perguntei-lhe ao invés qual era o aroma predilecto dela.

Martinho

A janela despida

A janela de estrutura de madeira simples, velha, de vidros frágeis, sem cortinas e numa parede que mais lembra papel, deixa ver para fora o fim do vale de Alcântara. Adivinha-se à frente a linha do comboio quando passa um, vê-se a avenida de Ceuta com carros que devolvem o sol nascente a esta colina voltada a ocidente, quase cegando, e que, a esta distância, se assemelham a brinquedinhos. Um espelho pendurado ao lado da janela devolver-me-ia o cabelo despenteado por cima de um rosto ensonado, o tronco despido, pele arrepiada do frio, o olhar fixo, perdido na janela e os lábios tacteando uma caneca de café com leite que acabei de preparar.
Tento iludir a passagem do tempo buscando pensar em coisa nenhuma, buscando esvaziar a mente, ou dando importância aos ruídos da cidade que me chegam a espaços largos, uma ou outra voz estridente das mães que a esta hora de sábado arrastam o puto para fora de casa para irem com elas à praça. A mera sugestão de um cenário convida-me a um passeio pela memória.

Nasci em Lisboa, no fim da época em que ainda se ouviam pelas vidraças pregões e, menos frequentemente, o som inconfundível da gaita do amolador. Lembro ao acaso e com melancolia o meu primeiro chapéu-de-chuva, comprado de ajuste ao meu tamanho, de cabo de plástico com relevos a imitar pregas no couro. No segundo ou terceiro Inverno houve que recorrer aos serviços do senhor que vinha pedalando rua abaixo, e depois num lapso de tempo transformava a bicicleta em bancada e pedra de amolar. Levou-me a minha avó pela mão ao assobio lento e depois rápido da gaita, o chapéu na minha outra, à esquina da rua, para que se reparasse a vareta solta. Aos primeiros assobios mal coados por uma janela como aquela que tenho diante de mim, confirmou que o lume do fogão podia mesmo dispensar os seus cuidados por um quarto de hora, desatou o avental e largou-o sobre o banco de tampo vermelho num só gesto, chave e porta-moedas sempre prontos a serem fisgados de saída, eu na outra dela, com o recado pega no chapéu, vamos arranjá-lo, e eis-me na rua, banhado por um sol de Páscoa, redentor, secando as chuvas com que o Inverno se despediu até Dezembro, fazendo num estalar de dedos uma qualquer rua ficar eternizada na memória de um miúdo.

Há-de vir, um tempo em que eu já não pense assim, nas memórias, como se só nelas houvesse vida e sensações com cores garridas e odores sumptuosos, há-de vir esse tempo feito só de presentes, em que os passados são como o sal que salpico com prudência sobre o jantar, prevenido que estou contra a comida sem tempero, mas também contra os males dos exageros, sal que serão passados que servem o presente. Volta-me o espírito à sala. Lembro-me um morto-vivo. Daqui a nada as horas vão exigir de mim que cozinhe e que me nutra, que arrume, que me arrume. Salva-me de qualquer maneira a noite, em que debaterei factos diversos - de pouco ou nenhum interesse para a ferida que não sara - com outros frequentadores do mesmo bar onde o álcool afoga as mágoas, ou as queima, adiando para a aurora que se segue um novo passeio às vistas desprovidas de cor e magia como a da minha janela, nesta manhã, e do meu tronco despido e só.
Martinho

quarta-feira, agosto 09, 2006

Baby

Sou atirado pelo fio que viaja ao contrário à velocidade do pensamento, e chego em meio ápice à primeira vida. Ao secar as mãos na toalha turca, muito felpuda porque ainda é nova, e por isso pouco absorvente, o que me demora o gesto e irrita, vi-me uns bons três palmos mais baixo, quando ainda não me curvava para ficar à altura do toalheiro.
Fiquei prostrado, as pupilas dilatando-se, de um olhar fixo no nada, enquanto a íris do espírito me alimenta sucessões de imagens, velozes demais para que as possa registar, tipo one-time offer ou filme que já há muito saiu da tela, não voltou à emissão e nos esquecemos de gravar.
Banho-me de ingenuidade em puro deleite com água tépida. Os gestos demorados fazem-na deslizar devagar pela linha da nuca, baixando do pescoço pelo peito e do outro lado pelos ombros e pelas omoplatas.
Deixo-me caprichosamente tomar por um amargo de boca, um rancor, e nado de volta ao líquido amniótico, não o uterino, mas um outro igualmente estanque, contido pelos espaços primeiros, e a que primeiro chamei meus, mesmo antes das palavras. Contemplo o lado de fora, sabendo-me protegido cá dentro. (A película que me separa do exterior, que me ampara, protege e resguarda não é transparente, mas deixa passar vultos, cores, sons, e em dias bons até mesmo alguns cheiros. Adivinhava que o lado despressurizado me esperava, para quando não se sabia então ainda. Por ora, resta emanar um ar de quem ainda não deu por nada, protelando o inevitável. Entretenho-me fitando os dedos das mãos.) Porém, também este lago esférico irá perder as suas margens, derramar-se numa poça inútil e pequena, suja, que convém limpar até que dela nada reste.
Mas hoje vou deixar-me ficar no lago. Vou deixar-me afogar pelas águas do lago, e respirar com verdadeira liberdade, num mundo a que não pertencem as coisas de fora.
Martinho