domingo, outubro 15, 2006

O vazio paralelo





Ao Lucky, que morreu esta manhã.

(1991-2006)
A luz mudou.

Estou a andar dentro de casa, detenho-me por dois segundos. Percorre-me a ideia de que algo está fora do sítio e que me levantei não sei já porquê. Não estou com sede. A cama está por fazer e espera que eu a faça, ou que nela me deite mais logo, decido eu.

Ao cair do terceiro segundo, lembro-me que não estás aqui. Que não vais voltar. Andei umas horas a cozinhar com temperos de engodo as emoções, como se pudesse disfarçar o sabor de uma carne que não gosto.

A luz mudou. Há uma fístula aqui em casa, que conduz a um vazio paralelo, indistinta a quem aqui não mora.

As minhas comoções ainda lá não chegaram, mas sei que não há-de tardar a tomada de culpa por não ter passado as tuas últimas horas contigo ao colo. Ontem, sabes, quando me fui deitar, olhei-te pela última vez, com uma mão bem firme a vedar a tampa da caixa onde trago os sentimentos, para não sofrer. Não sei como foi para ti, se terias preferido que eu o fizesse. Não sei se te teria acalentado, se te teria confortado. Se tivesse a certeza, teria abdicado do meu conforto egoísta. Tudo me levou a crer que preferias estar quieto, no teu canto. Assim me despedi de ti.

Hoje quando acordei, já não eras.

Sinto já a tua falta.

Deixaste um vazio muito maior que tu eras.

Fico agora aqui, desolado, como uma bola de ténis jogada entre a coragem e a cobardia, não sabendo qual delas representa o erro ou a tal culpa. Não sei se salvaguardar-me a alguma dor é cobardia ou se émesmo assim. Não deixo de pensar que me ensinaste uma lição, quando pioravas e te punhas espartana e estoicamente à porta de casa, a dormir no chão frio; encostado à saída.

Passámos quinze anos juntos. Contigo aqui em casa me fiz adulto, entrei e saí vezes sem conta, por uns minutos ou por mais de um ano… Poderia continuar horas a fio por este caminho, mas

Também este lamento tem que ter um ponto final. Como despedida, sabe, no Céu dos gatos onde estarás a chegar para viveres eternamente com whiskas, muitas gatas e uma lareira diante da qual vais dormir enroscado, sabe que te amei, como um humano pode amar um gato. E, mais do que o saberes agora, espero que o tenhas sentido enquanto aqui estiveste.

Uma festinha na tua nuca,
Martinho

quarta-feira, outubro 11, 2006

Jarro

sem flores,
estou atirado para cima de um móvel poeirento,

vazio,
menos a marca calcária que se vê de fora

de onde vem?, porque está lá?

de uma interrupção,
do inacabado.

da cruelmente veloz efemeridade do precioso.


Rui Aseglo