O vazio paralelo

Ao Lucky, que morreu esta manhã.
(1991-2006)
A luz mudou.
Estou a andar dentro de casa, detenho-me por dois segundos. Percorre-me a ideia de que algo está fora do sítio e que me levantei não sei já porquê. Não estou com sede. A cama está por fazer e espera que eu a faça, ou que nela me deite mais logo, decido eu.
Ao cair do terceiro segundo, lembro-me que não estás aqui. Que não vais voltar. Andei umas horas a cozinhar com temperos de engodo as emoções, como se pudesse disfarçar o sabor de uma carne que não gosto.
A luz mudou. Há uma fístula aqui em casa, que conduz a um vazio paralelo, indistinta a quem aqui não mora.
As minhas comoções ainda lá não chegaram, mas sei que não há-de tardar a tomada de culpa por não ter passado as tuas últimas horas contigo ao colo. Ontem, sabes, quando me fui deitar, olhei-te pela última vez, com uma mão bem firme a vedar a tampa da caixa onde trago os sentimentos, para não sofrer. Não sei como foi para ti, se terias preferido que eu o fizesse. Não sei se te teria acalentado, se te teria confortado. Se tivesse a certeza, teria abdicado do meu conforto egoísta. Tudo me levou a crer que preferias estar quieto, no teu canto. Assim me despedi de ti.
Hoje quando acordei, já não eras.
Sinto já a tua falta.
Deixaste um vazio muito maior que tu eras.
Fico agora aqui, desolado, como uma bola de ténis jogada entre a coragem e a cobardia, não sabendo qual delas representa o erro ou a tal culpa. Não sei se salvaguardar-me a alguma dor é cobardia ou se é só mesmo assim. Não deixo de pensar que me ensinaste uma lição, quando pioravas e te punhas espartana e estoicamente à porta de casa, a dormir no chão frio; encostado à saída.
Passámos quinze anos juntos. Contigo aqui em casa me fiz adulto, entrei e saí vezes sem conta, por uns minutos ou por mais de um ano… Poderia continuar horas a fio por este caminho, mas
Também este lamento tem que ter um ponto final. Como despedida, sabe, no Céu dos gatos onde estarás a chegar para viveres eternamente com whiskas, muitas gatas e uma lareira diante da qual vais dormir enroscado, sabe que te amei, como um humano pode amar um gato. E, mais do que o saberes agora, espero que o tenhas sentido enquanto aqui estiveste.
Uma festinha na tua nuca,
Martinho
Estou a andar dentro de casa, detenho-me por dois segundos. Percorre-me a ideia de que algo está fora do sítio e que me levantei não sei já porquê. Não estou com sede. A cama está por fazer e espera que eu a faça, ou que nela me deite mais logo, decido eu.
Ao cair do terceiro segundo, lembro-me que não estás aqui. Que não vais voltar. Andei umas horas a cozinhar com temperos de engodo as emoções, como se pudesse disfarçar o sabor de uma carne que não gosto.
A luz mudou. Há uma fístula aqui em casa, que conduz a um vazio paralelo, indistinta a quem aqui não mora.
As minhas comoções ainda lá não chegaram, mas sei que não há-de tardar a tomada de culpa por não ter passado as tuas últimas horas contigo ao colo. Ontem, sabes, quando me fui deitar, olhei-te pela última vez, com uma mão bem firme a vedar a tampa da caixa onde trago os sentimentos, para não sofrer. Não sei como foi para ti, se terias preferido que eu o fizesse. Não sei se te teria acalentado, se te teria confortado. Se tivesse a certeza, teria abdicado do meu conforto egoísta. Tudo me levou a crer que preferias estar quieto, no teu canto. Assim me despedi de ti.
Hoje quando acordei, já não eras.
Sinto já a tua falta.
Deixaste um vazio muito maior que tu eras.
Fico agora aqui, desolado, como uma bola de ténis jogada entre a coragem e a cobardia, não sabendo qual delas representa o erro ou a tal culpa. Não sei se salvaguardar-me a alguma dor é cobardia ou se é só mesmo assim. Não deixo de pensar que me ensinaste uma lição, quando pioravas e te punhas espartana e estoicamente à porta de casa, a dormir no chão frio; encostado à saída.
Passámos quinze anos juntos. Contigo aqui em casa me fiz adulto, entrei e saí vezes sem conta, por uns minutos ou por mais de um ano… Poderia continuar horas a fio por este caminho, mas
Também este lamento tem que ter um ponto final. Como despedida, sabe, no Céu dos gatos onde estarás a chegar para viveres eternamente com whiskas, muitas gatas e uma lareira diante da qual vais dormir enroscado, sabe que te amei, como um humano pode amar um gato. E, mais do que o saberes agora, espero que o tenhas sentido enquanto aqui estiveste.
Uma festinha na tua nuca,
Martinho
3 Comments:
Abraço
Beijinhos para ti:)
Patrícia
Já me aconteceu. Não consigo esquecer. De quando em vez ainda acordo sobressaltado, com uma dor no peito. É aí que vejo que não consigo esquecer aquela noite de tamanha dor.
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